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Alienação fiduciária de bem imóvel. A inconstitucionalidade do ITBI na consolidação da propriedade
Alienação fiduciária de bem imóvel. A inconstitucionalidade do ITBI na consolidação da propriedade

 Mauro Antônio Rocha [*] 

Uma incompreensível exigência de prova do pagamento do ITBI inserida na Lei 9514/97 atrelou ao procedimento de consolidação da propriedade em nome do credor a inconstitucional imposição de pagamento do imposto. 

 

 1. Como é sabido, a alienação fiduciária regulada pela Lei nº 9.514/1997 é o negócio jurídico que transfere ao fiduciário a propriedade resolúvel de coisa imóvel, com o escopo de garantiade outro negócio jurídico, simultâneo ou precedente, de qualquer ordem. A propriedade fiduciária que emana da inscrição do título no competente Registro de Imóveisii não se equipara, para quaisquer efeitos, à propriedade plenaiii, remanescendo na titularidade do fiduciante o direito real de aquisição do bemiv e, por sua natureza jurídica de direito real de garantia, está exceptuada da incidência do imposto de transmissão de bem imóvel – ITBI. 

A não incidência do mencionado tributo advém de expresso aparte estabelecido no inciso II do artigo 156 da Constituição Federalv, replicado no inciso II do artigo 35 do Código Tributário Nacionalvi, da condição resolutiva contida na transmissão fiduciária e, principalmente, da vontade política de não sobrepesar o custo operacional das transações no mercado de créditos. 

De modo igual e pelas mesmas razões, também não haverá incidência do imposto quando da resolução da propriedade fiduciária pelo pagamento integral da dívida e consequente cancelamento do registro do direito real de garantia, que será efetuado com a mera apresentação ao oficial do Registro de Imóveis do termo de quitação fornecido pelo fiduciário. 

Ocorrem, no entanto, situações em que a resolução da propriedade fiduciária decorre do inadimplemento de obrigação contratual pelo fiduciante, circunstância prevista e regida no art. 26 da Lei nº 9.514/1997, através da dação em pagamento ou da consolidação da propriedade em nome do fiduciário com a consequente e compulsória venda do imóvel em leilão público 

1.1 Dação em pagamento 

A dação em pagamento regulada nos arts, 356 a 359 do Código Civil é o acordo ajustado entre os contratantes pelo qual o credor consente em receber prestação diversa da que lhe é devida à título de pagamento, com determinação do preço e relações entre as partes pautadas pelas normas do contrato de compra e venda. A dação prevista no parágrafo 8º do art. 26 da lei de regência permite ao fiduciante darcom a anuência do fiduciário, seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívidaviidispensando a alienação obrigatória do bem em leilão

A dação em pagamento concilia a resolução da propriedade fiduciária, operando a revogação da cláusula resolutiva e o cancelamento da garantia findando a relação de confiança, com a transmissão definitiva da propriedade plena do bem imóvel ao fiduciário – sem abrigo na salvaguarda constitucional de não incidência, constituindo, dessa forma, o fato gerador do ITBI. 

1.2 Alienação do imóvel em público leilão 

O inadimplemento de obrigação contratual coloca o fiduciante em mora e, observados os procedimentos legais, dá causa à consolidação da propriedade, com o cancelamento da garantia fiduciária e confirmação da propriedade plena ao fiduciário, condicionada, entretanto, à compulsória oferta de venda em leilão público do imóvel cuja propriedade foi consolidada em virtude do decurso do prazo de purgação da mora. 

A alienação do bem em público leilão, com a obediência aos dispositivos legais e contratuais aplicáveis, busca converter o ativo nos recursos monetários 

necessários para a satisfação do crédito e a transmissão da propriedade dela resultante constituirá o fato gerador do imposto de transmissão intervivos

1.3 Leilões negativos e extinção da dívida 

O resultado negativo da oferta para venda do imóvel em leilão acarretará a extinção do crédito e o fiduciário tornar-se-á senhor do bem – pelo valor da dívida – com a transmissão plena e definitiva da propriedade, sem a necessidade, em nenhum tempo, de prestar contas ao fiduciante da destinação ou de eventual excesso que resultar da venda do imóvel. 

A transmissão plena e definitiva da propriedade ao fiduciário resultará da averbação requerida pelo interessado dos documentos, assinados pelo leiloeiro, que comprovem o insucesso dos leilões promovidos, postada no campo de incidência do tributo, torna exigível o recolhimento e comprovação de pagamento do ITBI. 

2. Inconstitucionalidade da exigência do pagamento do ITBI na consolidação da propriedade 

Da mesma forma, consideradas as razões jurídicas de não incidência tributária quando da constituição da garantia, não se apresenta lícita a exigência do pagamento do ITBI na consolidação da propriedade por conta de inadimplemento contratual, visto que a propriedade em nome do fiduciário será estabelecida ainda em caráter assecuratório, condicionadaviii, limitada e cerceada, despida do direito de livre disposição e com os direitos de uso e fruição tolhidos ou, no mínimo, circunscritos, além de vedada qualquer pretensão de apropriação do bem pelo agora proprietário. Ademais, como já visto, por força de dispositivos legais expressos e obrigatoriamente transcritos para o contrato de alienação fiduciária o bem imóvel será obrigatoriamente ofertado e vendido em público leilão, propiciando sua conversão em numerário para a satisfação da dívida e restituição do eventual excedente ao fiduciante. 

No caput e nos oito parágrafos do referido artigo 26 estão minudenciados de forma satisfatória os procedimentos prescritos para a consolidação da propriedade, da intimação do fiduciante para pagamento do valor da dívida ou das parcelas e encargos vencidos ao detalhamento da consequência do não atendimento ao chamado para a purgação da mora no prazo concedido. 

Contudo, inusitada e incompreensível exigência de vista da prova do pagamento do imposto de transmissão intervivos, acoimada ao parágrafo 7º do mencionado art. 26 da Lei nº 9.514/1997, como condição para a promoção da averbaçãoix da consolidação da propriedade pelos oficiais de registro de imóveis atrelou ao procedimento impertinente imposição de recolhimento do tributo, expressamente vedado na carta constitucional vigente. 

A utilização do adjetivo impertinente se justifica por conta de equivocados entendimentos a que a referida exigência dá causa por sugerir a incidência tributária, contrariando a disposição expressa contida no próprio art. 26 e seus parágrafos. Dessume-se da norma legal em comento que a consolidação ali referida resulta – exclusivamente – da mora, da intimação válida do fiduciante e decurso do prazo deferido para a purgação certificado pelo registrador que procederá, de ofício, sua averbação com a resultância de suprimir o direito real de aquisição e estabelecer propriedade condicionada em favor do fiduciário. 

A incômoda redação do referido § 7º do art. 26 parece ter atordoado os operadores do direito de tal forma que, apesar de decorridos quase trinta anos da promulgação da lei, poucas ações foram propostas com o objetivo de afastar a exigência de recolhimento do imposto, da comprovação do pagamento ao oficial de registro ou para apontar a inconstitucionalidade dessas exigências. 

Em artigo publicado no boletim Migalhasx o ilustre advogado André Abelha, examinou algumas decisões judiciais favoráveis à não incidência do imposto, arrolou os principais argumentos invocados pelos magistrados e buscou o xeque-mate ao asseverar que nenhum deles resistiria a uma análise crítica e concluir que “não há razão jurídica que fundamente, com solidez, a 

inexigibilidade do ITBI por ocasião da consolidação da propriedade em nome do credor”. 

Ao primeiro argumento atribuído aos magistrados – o imposto teria sido recolhido por ocasião da instituição da garantia não havendo razão para fazê-lo novamente – o autor rebateu com precisão, esclarecendo a reiterada confusão entre a incidência e pagamento do ITBI na compra e venda do imóvel pelo fiduciante e não incidência na constituição da propriedade fiduciária em garantia do empréstimo ou financiamento contratado para a aquisição, e que, podendo ser o contrato principal de qualquer natureza, nem sempre haverá anterior transmissão de propriedade geradora da obrigação de pagamento do imposto. 

Outro argumento pautado foi também afastado de plano pelo autor – a lei ordinária não pode definir fato gerado do ITBI sem violação da reserva da lei complementar – por ser irretorquível que a Lei nº 9.514/1997 não define fato gerador do ITBI, limitando-se a estabelecer o dever de fiscalização para o registrador de imóveis. 

Com acerto, o autor busca desqualificar o derradeiro argumento – a propriedade já era do credor e, por isso, inexistindo transmissão não há fato gerador

Considera, inicialmente, a possibilidade de a propriedade ficar com o credor no caso de dois leilões negativos, o que é, de fato, uma permissão legal e, então, a não incidência do imposto respaldaria evidente contradição do sistema. Não obstante, já vimos anteriormente que, ao contrário do aventado, essa transferência onerosa e definitiva da propriedade plena ao credor em pagamento da dívida após o insucesso na oferta pública configura o fato gerador do imposto definido no inciso I do art. 156 da Constituição e se encontra fora do campo da não incidência, consequentemente é devido o pagamento do ITBI. 

Prosseguindo, sustenta ser o “escopo de garantia” a única e exclusiva razão para a não incidência do ITBI na contratação para concluir que, ‘a constituição da alienação fiduciária cria apenas um patrimônio separado, afetado 

a garantir o pagamento da dívida, e o credor passa a ser fiduciário, e não pleno proprietário. É a consolidação que põe fim a tal escopo, tornando efetiva a transferência da propriedade, não mais fiduciária. O que antes era um direito real de garantia, com a consolidação deixa de sê-lo. Daí a incidência do tributo’. 

Peço vênia para, com o devido respeito, discordar de algumas considerações trazidas pelo i. advogado, inclusive do juízo conclusivo sobre não haver razão jurídica que fundamente a inexigibilidade da incidência do ITBI na hipótese tratada e apresentar a matéria sob outra perspectiva. 

Apesar da premissa lógica, parece evidente que o escopo de garantia se finda com a liquidação da dívida assegurada e não com a consolidação da propriedade que, na estrutura criada para a garantia fiduciária, conforma um procedimento destinado a possibilitar a realização do ativo e a liquidação da dívida, estabelecendo – vale repetir – um domínio limitado e cerceado, mas ainda em caráter assecuratório, com os direitos inerentes à propriedade tolhidos e circunscritos, de modo que o aludido patrimônio separado, a garantir o pagamento da dívida ainda vigerá após a consolidação – mantendo intacto o desígnio de direito real de garantia para a garantia do crédito financeiro – não se embaralhando com o patrimônio imobiliário do credor proprietário. 

Resta límpido que a consolidação da propriedade exprime o exercício do direito real de garantia, portanto, ainda sob a proteção da norma constitucional de imunidade e que não desfaz a vocação assecuratória da propriedade fiduciária que permanecerá íntegra até a conversão do bem em recursos de maior liquidez, apropriados ao pagamento da dívida garantida. 

Finalmente, para amparar a incidência tributária, o autor aventa a possibilidade de estímulo a fraude, mediante simulação da alienação fiduciária para que, em conluio, possam os contratantes furtar-se ao recolhimento do imposto. Cumpre salientar que a possibilidade de fraude ou simulação não é razão que justifique a cobrança de impostos. Ademais trata-se, a nosso ver, de fraude impossível na alienação fiduciária. Como já visto, na resolução contratual pelo pagamento haverá o cancelamento da propriedade fiduciária, sem a 

incidência do imposto de transmissão. Na resolução contratual pela inadimplência, após a consolidação o bem será levado a leilão e vendido pela melhor oferta ou no caso de ausência ou insuficiência das ofertas, a propriedade plena do imóvel será transferida definitivamente ao credor e, em qualquer dessas hipóteses, com a incidência e correspondente recolhimento do ITBI. 

A violação da imunidade conferida pelo inciso II do art. 156 da Constituição Federal faz inconstitucional a exigência de pagamento do imposto na consolidação da propriedade e transforma em letra morta a exigência legal de comprovação do recolhimento como requisito para sua averbação pelo registro de imóveis. 

A passividade com que o “contribuinte” enfrenta a imposição ilegal dessas exigências se explica pela imediata agregação das despesas e encargos à dívida originária para compor o valor mínimo de venda do imóvel em leilão público, proporcionando o ressarcimento integral ao fiduciário do valor recolhido, assim como, na correspondente redução do quantum a ser restituído ao fiduciante quando apurado excedente na venda. 

Para tanto dispõe a lei que, frustrado o primeiro leilão seja realizado o segundo para a venda do imóvel por, no mínimo, valor igual ao da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiaisxiO mesmo critério é repetido no § 2º-B do art. 27 que acresce expressamente ao preço do imóvel para o exercício do direito de preferência pelo fiduciante os valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário…xii 

Convém registrar, neste ponto, que respeitados os procedimentos registrais da consolidação da propriedade da forma como estão estabelecidos, observada a inconstitucional exigência de comprovação de pagamento do imposto de transmissão expressa no parágrafo 7º do artigo 26, haverá ilegal e despropositada bitributação onerando indevidamente o fiduciante. 

3. Do acima exposto é possível extrair e oferecer ao debate as seguintes conclusões: 

(a) A não incidência inicial do imposto sobre a transmissão de bem imóvel na alienação fiduciária em garantia, deriva da imunidade expressa no art. 156, II da Constituição Federal e repetida no art. 35, II do Código Tributário Nacional; 

(b) Não haverá incidência do imposto quando da resolução da propriedade fiduciária pelo pagamento integral da dívida e consequente cancelamento do registro do direito real de garantia que se fará com a apresentação do termo de quitação fornecido pelo fiduciário ao oficial do Registro de Imóveis; 

(c) Não haverá incidência do imposto de transmissão da propriedade na consolidação da propriedade pelo inadimplemento contratual, nos termos do art. 26 da lei de regência, visto que a transmissão do domínio é condicionada e limitada, ainda em caráter de garantia, estando vedada a apropriação do bem pelo credor que estará obrigado a alienar o imóvel em leilão público e a entregar ao fiduciante o valor que sobejar ao crédito, configurando mero instrumento de facilitação da prestação assecuratória; 

(d) A consolidação da propriedade em nome do credor exprime o exercício do direito real de garantia estando portanto, ainda sob a proteção da norma constitucional de imunidade 

(e) É inconstitucional a exigência de apresentação de comprovante de pagamento do imposto de transmissão da propriedade na consolidação da propriedade realizada como meio para a alienação do imóvel e satisfação da dívida garantida e viola a imunidade conferida pelo incido II do art. 156 da Constituição Federal; 

(e) Configurará hipótese de incidência do imposto e fato gerador da obrigação tributária a ocorrência de qualquer uma das situações explicitamente previstas na Lei nº 9.514/1997, das quais decorram a transmissão efetiva da propriedade, (i) na dação em pagamento; (ii) na transmissão da propriedade ao arrematante 

do imóvel em leilão; (iii) na efetiva transmissão da propriedade ao fiduciário desobrigada da alienação forçada, quando ratificado o insucesso da venda em leilão. 

[*] Mauro Antônio Rocha é advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP, com pós-graduação em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral, com diversos cursos de extensão e aperfeiçoamento em Direito Imobiliário, Urbanístico, Notarial, Tributário, do Consumidor, entre outros. Vice-Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP na gestão 2017/2018. Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI e Vice-Presidente da Academia de Direito Notarial e Registral – AD NOTARE. Palestrante e instrutor e professor. Coordenador de Contencioso Jurídico da Caixa Econômica Federal – CEF. Autor do livro “Alienação Fiduciária de Bem Imóvel – da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros”. 

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia
Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia

Mauro Antônio Rocha
Decisões do TJ/SP que aplicam equivocada tese de enriquecimento sem causa, transferem ao fiduciário ônus e consequências do descumprimento contratual pelo devedor e condenam o credor à ‘aquisição’ do imóvel constituído em garantia.

 

A abstrata possibilidade de enriquecimento imotivado do fiduciário intimida o instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia desde a promulgação da lei 9.514/97 mormente quando – depois do inadimplemento contratual absoluto pelo fiduciante e frustrada a venda do imóvel nos públicos leilões – ocorre a transmissão definitiva da propriedade para o credor.

Esse constrangimento, que no passado era enfrentado especificamente por devedores e fiduciantes, recentemente passou a ser experimentado também pelos credores fiduciários na esteira de uma sequência de decisões emanadas da 29ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo1 determinando ao credor, nesses casos, que efetue em favor do fiduciante o pagamento de “quantia relativa à diferença entre o valor da avaliação e o valor atualizado da dívida (com todos os encargos contratuais) somado ao das despesas devidamente comprovadas, apurado no momento da adjudicação do imóvel (data do segundo leilão negativo), corrigido monetariamente a partir de então e acrescido de juros de mora desde a citação”, além do ônus sucumbencial.

Visivelmente desacertadas aquelas decisões condenam o fiduciário à ‘adquirir’ o imóvel por valor superior ao da oferta pública e universal de venda no segundo leilão ao, por absurdo, impor o pagamento do valor ‘relativo à diferença entre o valor de avaliação e o valor atualizado da dívida’, independentemente do valor do bem alcançável no mercado e transferem do devedor para o credor, de forma enviesada, os ônus e responsabilidades do descumprimento contratual pelo devedor.

Peço vênia para articular algumas considerações sobre o assunto.

  1. De início, cabe reconhecer que, com a extensão de uso da alienação fiduciária de bem imóvel para a garantia de transações comerciais e financeiras diversas do típico e originário financiamento imobiliário, desfez-se a singela e convencional correlação de forças imaginada pelo legislador, notadamente no ajustamento do instituto às operações comerciais, de prestação de serviços, e de empréstimos bancários sem destinação específica, pela desproporção entre o valor de avaliação do bem oferecido em garantia e o montante dos recursos fornecidos pelo credor.

Essa disparidade entre o valor da garantia e o valor garantido, em geral muito menor, apontada desde os primórdios da lei e considerada a principal fragilidade da alienação fiduciária, cria um gap patrimonial apto a desiquilibrar as relações contratuais e  granjeou maior relevância nos últimos anos pelos reflexos potencialmente danosos ao fiduciante quando adotada a solução derradeira2 determinada pela lei 9.514/97 com a transmissão definitiva do imóvel para o patrimônio do credor fiduciário.

Urge, portanto, realinhar a norma legal, mediante atividade legislativa, para obstar que o credor opere indevidamente os procedimentos da execução extrajudicial, com o fito de angariar benefícios que caracterizem, ao final, o aviltante “enriquecimento sem causa”.

Isso não significa, no entanto, assentir cabalmente com a equivocada tese de enriquecimento do credor fiduciário tão-só pela assunção da propriedade plena do imóvel após as infrutíferas tentativas de venda por meio dos leilões públicos.

  1. O enriquecimento sem causa, em sua melhor definição, decorre do acréscimo de bens que, em detrimento de outrem, se verificou no patrimônio de alguém, sem que para isso tenha havido fundamento jurídico. Requer a ausência de justa causa, o locupletamento ilegal e o nexo causal entre o enriquecimento  e o empobrecimento, é dizer, o acréscimo patrimonial de uma parte deve coincidir com o decréscimo patrimonial da outra, sem justificativa jurídica plausível.

No entanto, a venda do imóvel objeto da garantia para terceiros em leilão, assim como a transmissão plena e definitiva da propriedade ao credor fiduciário após o público, efetivo e frustrado leilão, estão notoriamente fundadas no parágrafo 5º do art. 27 da supradita lei 9.514/97, não se amoldando, nesse aspecto, à definição indicada.

Também não se encontrará nas modalidades tratadas acréscimo ou decréscimo patrimonial das partes que se possa correlacionar de forma imediata ou mediata.

Na arrematação do bem em leilão, o licitante pagará em moeda contada – exclusivamente – o montante correspondente ao da oferta pública de venda, que será utilizado para a liquidação da dívida, reembolsando-se ao fiduciante o que sobejar.

Na transmissão da propriedade plena, definitiva e incondicionada do bem ao fiduciário, haverá a conversão de ativo financeiro (créditos de titularidade do credor não adimplidos espontaneamente pelo devedor) em ativo imobiliário (transferência plena e definitiva da propriedade do imóvel ao credor, mediante quitação total ou parcial da dívida, conforme o caso), enquanto ao devedor restará elidido o passivo financeiro (dívida e encargos).

Tanto a conversão quanto a elisão se darão por grandeza correspondente ao valor de mercado do bem, representado pela quantia exigida para a venda pública, regularmente proposta.

Avaliação e mercado são valores comumente não convergentes. O valor de avaliação é apurado através de perícia ou outro meio técnico-profissional aceitável e servirá de indicador para o lance mínimo de venda. O valor de mercado, por sua vez, espelhará o lance máximo considerado atrativo pelos licitantes e interessados na aquisição do bem.

Assim, nos exatos contornos do procedimento definido pela lei 9.514/97, demonstrada a ausência de interesses que descarte o valor de avaliação, parece lógico que o bem seja oferecido pelo seu valor de mercado, neste caso representado, por força de determinação legal, pelo valor total da dívida. Quando, ainda assim, não se apresentarem lances vencedores, manda a lei que a propriedade seja transferida definitivamente ao credor pelo valor da dívida, porque coincidente com o valor de mercado utilizado para a decisiva oferta pública de venda, de maneira que, à princípio, não se poderá comprovar enriquecimento ilícito ou imotivado.

Para afastar possível desvio ou ilegalidade a lei processual vigente3 veda a aceitação de preço vil pela oferta, assim considerado o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz ou a cinquenta por cento do valor de avaliação, que, dessa forma, passarão a configurar o valor de mercado do imóvel para todos os fins.

  1. Ainda assim, é inegável que em certas transações entre pessoas naturais ou jurídicas não financeiras a solução proposta no § 5º do art. 27 da lei 9.514/97 revele a perspectiva de demasiado benefício ao credor, porém, não se configurará facilmente a ilicitude do locupletamento, face à já aludida autorização legal.

No caso específico das instituições financeiras, entretanto, a expectativa da colheita de lucros não operacionais pela especulação imobiliária e, portanto, da própria caracterização de qualquer benefício ilícito ou de enriquecimento não justificado, pode ser considerada inexistente, uma vez que esses imóveis recebidos como “bens não de uso” deverão ser compulsoriamente vendidos nos prazos estipulados pelo Banco Central do Brasil4, sob pena de aplicação das cominações legais cabíveis, que incluem restrições ao limite de operações de empréstimos com liquidez. Para além disso, a recepção e retenção desses bens requer vultoso dispêndio de recursos para o pagamento das despesas de administração, manutenção, segurança, tributárias, condominiais etc. a reclamar a imediata realização de campanha de venda direta pela melhor oferta.

Concluindo o raciocínio, se o bem é oferecido à venda, com a estrita observância da lei, por valor correspondente à metade do valor de avaliação, este é o valor de mercado a que estará sujeito qualquer interessado, inclusive o credor no exercício de seu direito de aquisição da propriedade. Ora, se qualquer terceiro poderia adquirir o bem pelo valor da oferta, não se justifica a imposição do julgado que o obrigue a pagamento maior pela adoção do valor da avaliação.

E, no caso julgado, ainda que se considere que a transmissão da propriedade se deu por preço vil – inferior a cinquenta por cento do valor de avaliação do imóvel – uma justa condenação estaria limitada ao pagamento complementar igual à diferença entre o valor de mercado, definido na forma acima referida. e o valor atualizado da dívida.

  1. Contudo, as decisões do TJ/SP acima referidas, para além do equívoco apontado, inauguraram um novo argumento, no mínimo, insólito ao pretexto de que a hipótese dos autos não se amoldaria aos dispositivos legais citados porque, no caso, não houve lance a ser considerado pela ausência de licitantes interessados.

Obviamente, em certame de lanços com estipulação prévia de oferta mínima é inesperado que alguém faça, de boa-fé, proposta de valor inferior ao lance inicial e, da mesma forma, é impensável que dessa oferta o leiloeiro faça o registro.

Se o edital foi regularmente publicado – e não há nenhuma informação em contrário – e o leilão efetiva e comprovadamente realizado – o que está confirmado nos relatórios – a ausência de lance, coincide ao não ofertamento de proposta de valor igual ou superior ao montante da dívida, não havendo na lei de regência, nem mesmo no código processual, dispositivo que condicione a existência de lance para a validade da praça.

Com relação a esse argumento, cumpre perquirir: (a) se a existência de registro de oferta descartada pelo leiloeiro, por valor inferior ao lance mínimo alteraria, de alguma forma, a decisão prolatada?; (b) se a inexistência de lance que descaracteriza o certame, como decidido naqueles julgados, não invalidaria, por consequência, o leilão, tornando-o nulo de pleno direito?; e (c) se o leilão pode ser nulo de pleno direito a transmissão da propriedade ao fiduciário, não seria, igualmente, nula de forma, a exigir a retomada do procedimento desde aquele ponto, o que faria nulo também o julgado condenatório?

  1. Finalmente, a alienação fiduciária de bem imóvel é o maior, o melhor e o mais importante instrumento de garantia vigente, permite a concessão facilitada e abundante de crédito com taxas de juros reduzidas e deve ser preservado para o atendimento dos milhões de brasileiros que sonham com a conquista da moradia própria e para o bem do crédito imobiliário, da construção civil e da própria estabilidade econômica do país.

A preservação desse instrumento de garantia carece da confiança do mercado financeiro de que a segurança jurídica que a lei 9.514/97 não será abalada por decisões judiciais equivocadas como as que foram aqui expostas. É preciso que, sem abandonar as lutas pelo justo atendimento dos anseios do fiduciante, se faça também a defesa do regular direito do fiduciário.


1 Ap. Cível 100368597.2020.8.26.0292; Rel. José Augusto Genofre Martins; 29ª Câmara de Direito Privado; Julg.28/06/2022; Ap. Cível 1002455-19.2017.8.26.0100; Rel. Fabio Tabosa; 29ª Câmara de Direito Privado; Julg. 25/02/2022; Ap. Cível 1007621-29.2018.8.26.0704; Rel. Mário Daccache;  29ª Câmara de Direito Privado; Julg. 16/02/2022.

2 Lei nº 9.514, de 20/09/1997, art. 27, § 5º.

3 Código de Processo Civil, art. 891 e § único.

4 Lei 13.506/2017, art. 3º, § 2º, II e Circular BCB 909, de 11/01/1985.

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia
Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia

Mauro Antônio Rocha

São essas as considerações que entrego com vistas ao debate e aprimoramento do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.

 

Na “ausência” de termo legal expresso para a consolidação da propriedade após decorrido o prazo para purgação da mora – e com base em incurial norma de serviço emanada da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo – os direitos dos fiduciantes são violados e suas dívidas injustamente oneradas.

  1. De acordo com os procedimentos da lei 9.514/97 verificado o inadimplemento total ou parcial da dívida pelo devedor e observado o decurso do prazo contratual de carência cabe ao credor iniciar a execução extrajudicial requerendo ao Oficial de Registro de Imóveis a intimação do fiduciante para efetuar o pagamento no prazo legal.

Transcorrido o lapso de quinze dias contados da efetiva intimação, sem que o fiduciante pague o débito apontado, o oficial de registro certificará o fato e dará ciência ao credor, para que este proceda à comprovação de recolhimento do ITBI e do laudêmio incidentes sobre a transmissão do domínio exigida para a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário.

A lei não determina expressamente o prazo para que o credor efetive os pagamentos e comprove os recolhimentos fiscais essenciais para a averbação. Essa “ausência” de termo legal expresso permitiu, por largo tempo, a procrastinação indeterminada e conveniente do pagamento dos tributos, da averbação da consolidação e da consequente alienação do imóvel em leilão pelo fiduciário, violando direitos e onerando a dívida do fiduciante.

  1. No ano de 20131, entretanto, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo incluiu no capítulo XX de suas normas de serviço, destinadas aos cartórios extrajudiciais, dispositivo – posteriormente replicado nas normas administrativas do extrajudicial de diversos outros estados da federação – redizendo que a consolidação da propriedade se faz à vista do comprovante de recolhimento dos tributos exigidos, que a base de cálculo do imposto sobre a transmissão da propriedade é o valor econômico declarado pelas partes ou o valor tributário do imóvel, independentemente do valor remanescente da dívida, complementado por subitem que vige atualmente com a seguinte redação, após ser alterado pelo Provimento CG 56/19:

250.2. Decorrido o prazo de 120 (cento e vinte) dias sem as providências elencadas no item anterior, os autos serão arquivados, com cancelamento do protocolo. Ultrapassado esse prazo, a consolidação da propriedade fiduciária exigirá novo procedimento de execução extrajudicial.

A rigor, a norma administrativa apenas indicou ao oficial de registro que, no caso de abandono do feito pelo interessado, procedesse ao arquivamento dos autos “decorrido o prazo de 120 dias sem as providências elencadas”, além de prescrever punição obviamente deturpada ao exigir “novo procedimento de execução extrajudicial” para o prosseguimento da excussão como consequência da negligência, entretanto, restou convencionado entre oficiais de registro de imóveis e credores fiduciários que “o credor tem um prazo de 120 dias”, conforme a norma administrativa e que “o prazo de vigência da prenotação de pedido de intimação ficará prorrogado até a finalização do procedimento com a apresentação do pagamento do imposto de transmissão, ITBI ou laudêmio”2.

Ainda que se pretenda sustentar a aludida “ausência” de prazo legal para a averbação da consolidação da propriedade – tema que será enfrentado em seguida – para justificar a adoção do prazo sugerido na norma  de serviço é preciso ressaltar que a e. Corregedoria da Justiça, mesmo autorizada a regulamentar as atividades dos  cartórios extrajudiciais3, não detém competência para legislar, especialmente sobre Direito Registral, matéria privativa da União, nos termos do art. 22, inciso XXV, da Constituição Federal, alterar prazos ou estabelecer obrigações para o jurisdicionado e, para além disso, que o prazo destacado não traz coincidência razoável com os demais prazos prescritos na lei, que expressam a celeridade e a agilidade pretendida no procedimento extrajudicial adotado.

  1. Ocorre, porém, que a afirmada presunção de “ausência” de prazo legal para a averbação de interesse do credor não resiste ao exame superficial do procedimento de execução extrajudicial trazido pelo art. 26 da lei 9.514/97 sob o crivo do direito registral vigente.

Nos termos do art. 26 da lei 9.514/97, a execução extrajudicial tem início com a constituição do fiduciante em mora e a prenotação de requerimento do fiduciário para que o oficial de registro proceda à intimação do fiduciante para a purgação da mora. Sobre a prenotação, ou inscrição no Livro do Protocolo, discorre o Desembargador Ricardo Dip, ao comentar o artigo acima transcrito:4

“Se o atual registro imobiliário brasileiro, centrado ‘quodammodo’, no método da matrícula ou fólio real (art. 195, LRP), demanda, para a complementação do sistema publicitário, o recurso a uma fonte pessoal (art. 180, LRP), não menos a metódica registral, já não à vista direta da publicidade, mas dirigida à garantia de direitos, exige uma ordem no tempo aquisitivo desses direitos. Não, entre nós, uma ordem exógena: ainda que o pudera ser, mediante alguma espécie de prioridade indireta, extrarregistrária, p. ex., notarial. No entanto, isto sim, uma ordem endógena, interna ao método registrário: a prenotação, i.e., a inscrição no Livro do Protocolo (art. 173, inc. I, 174 e 184 e ss., LRP).” (os grifos são do autor)

Isto posto, o registro imobiliário brasileiro obedece a “uma ordem no tempo aquisitivo” consubstanciada na prenotação, que estabelece o direito posicional de preferência, assim lecionado por Dip:

“O transitório direito posicional de preferência registrária, resultante da prenotação – potior in iure qui priusin tempore ou, mais exatamente, prius in tempore, fortior in tabula – permanece: (a) pelo prazo ordinário de 30 dias; (b) durante o processamento da dúvida (cf. art. 203. LRP); (c) até que se perfaça o registro ou a averbação objeto, a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação.” (os grifos são do autor)

A lei 6.015/73 – Lei dos Registros Públicos – que estabelecia, na redação vigente até o dia 27 de junho de 2022, a cessação dos efeitos da prenotação após decorridos 30 (trinta) dias de seu lançamento no protocolo – estabelece na redação vigente após o dia 28 de junho de 2022 que:

Art. 205 – Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 20 (vinte) dias da data do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais. 

O procedimento administrativo da execução extrajudicial da alienação fiduciária está regulamentado nos itens 236 e seguintes do capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo e, para o que interessa ao presente estudo, suficiente trazer os seguintes itens:

  1. Prenotado e encontrando-se em ordem, o requerimento deverá ser autuado com as peças que o acompanham, formando um processo para cada execução extrajudicial.

[…]

240.1. O prazo de vigência da prenotação ficará prorrogado até a finalização do procedimento. 

240.2 Formulada nota devolutiva pelo registrador no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora, o não atendimento das exigências por omissão do requerente no prazo de 30 dias5 acarretará o arquivamento do procedimento de intimação, com o cancelamento da prenotação.

Temos, assim, que, rigorosamente observada a norma administrativa, a prenotação do requerimento de intimação dará início ao “processo para cada execução extrajudicial” – e, portanto, ao prazo ordinário de 20 dias predito na norma legal, que permanecerá sobrestado “no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora” e da necessidade de comprovação do recolhimento dos tributos devidos – com igual prazo para cumprimento de exigência formulada em nota devolutiva, nesse período – ou até que se perfaça seu objeto, o que coincidirá com a purgação da mora ou com a efetiva consolidação da propriedade – “a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação”.

Dessa forma, ainda que se considere as naturais dificuldades encaradas pelos oficiais registradores e seus prepostos para a intimação pessoal do fiduciante, ultrapassando os desencontros, incertezas cadastrais e ocultações deliberadas – que, muitas das vezes, exigirão a publicação de editais – justificadoras do protraimento do prazo sem o correspondente lastro legislativo, bem como uma autoconcedida “autorização legislativa” de prorrogação normativa do prazo de validade da prenotação inserida pela Corregedoria Geral da Justiça no item 456 e, mais especificamente, no item 240.1 supra transcrito, no capítulo XX das normas de serviço parece-nos evidente que o decurso do prazo quinzenário conferido à purga da mora rematará a protelação conferida, fazendo com que se retome a contagem do prazo legal para a “finalização do procedimento”.

Na doutrina pesquisada, somente BRANDELLI resvalou na questão proposta, da seguinte maneira:

“Apesar de a prenotação do requerimento de intimação ter validade legal de 30 dias (art. 205 da Lei n. 6015/73), neste caso, sua validade será sobrestada pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações, o que poderá importar em inúmeras diligências, bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações.”7 

Reconhece BRANDELLI a necessidade do sobrestamento da prenotação “pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações (grifo nosso) […] bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações”. Pode-se inferir da leitura que, mesmo na doutrina favorável, o eventual sobrestamento não se estende para além da ultimação do prazo para a purga da mora.

  1. Prosseguindo, para a determinação da vigência do prazo de averbação da consolidação da propriedade é imprescindível que seja definido o momento da “finalização do procedimento”.

A nosso juízo, e com vistas às normas legais e à melhor doutrina, havendo o lançamento do requerimento de intimação no Livro de Protocolo, isto é, feita a prenotação, “a finalização do procedimento” ocorrerá com: 

a)  a purgação da mora;

b)  a averbação da consolidação da propriedade ao credor; ou

c)  o não cumprimento de exigência de qualquer natureza pelo credor, regularmente apontada pelo oficial de registro, inclusive comprovação do recolhimento dos impostos devidos. 

A primeira alternativa não requer maior destaque, sendo finalizado o procedimento com o pagamento da dívida dentro do prazo legal deferido para a purgação da mora. Na segunda, “a finalização do procedimento” provirá do averbamento da consolidação da propriedade em nome do credor, após descumprido o prazo de purgação pelo fiduciante regularmente intimado e comprovado o pagamento dos tributos incidentes – respeitado o prazo legal demarcado para a prenotação.

Menos óbvia, a alternativa final reclama maior aprofundamento: “a finalização do procedimento” se dará com a cessação dos efeitos da prenotação pela omissão do interessado em cumprir exigência legal, assim dizendo, no vigésimo dia contado do lançamento do requerimento da intimação no Livro do Protocolo, sobrestado pela expedição da intimação e retomado a partir de ciente o fiduciário do decurso do prazo para pagamento pelo fiduciante, declinada a data inicial e incluída a do término do prazo.

No caso específico de omissão na comprovação de cumprimento da obrigação tributária bastará que se determine o termo inicial da prenotação [dia 1], o dia da expedição da intimação [dia 2] e a data em que o oficial do registro deu ciência ao credor fiduciário do decurso do prazo [dia 3].

A título de exemplo para requerimento protocolado já na vigência da lei que reduziu o prazo da prenotação para 20 dias:

[Dia 1] prenotação em 04/07/2022 (o dia inicial é descartado);

[Dia 2] intimação expedida em 07/07/2022 (já decorridos 3 dias);

[Dia 3] certificação do final do prazo 28/02/2023 (decorrido mais 1 dia). 

A partir de então o credor terá 16 dias (dos 20 dias de prazo de que trata o art. 205 da LRP), com termo final em 16/3/23, para cumprir a exigência, ou seja, comprovar o pagamento dos impostos devidos sob pena de perempção da prenotação e a obrigação de reiniciar o procedimento de execução extrajudicial, conforme demanda a norma administrativa. Cabe realçar que alguns autores entendem que o prazo de cumprimento de exigência no período da prenotação será sempre de vinte dias, o que altera o termo final para 20/3/23, mas em nada altera o raciocínio exposto.  

Na hipótese de garantia fiduciária vinculada a operação de financiamento habitacional deverá ser observada a carência de 30 dias8, após a expiração do prazo de purgação da mora, para a consolidação da propriedade e, nessa hipótese, o [dia 3] corresponderia ao termo final da carência, retomando o prazo limite para a comprovação do recolhimento dos tributos e consolidação da propriedade.

Resta claro do exemplo em comento que o sobrestamento é findo com a certidão e ciência do credor do transcurso do prazo sem purgação da mora pelo fiduciante, retomando a prenotação seu trâmite normal e que a “finalização do procedimento” resultará da comprovação de pagamento dos tributos exigidos e da averbação da consolidação na respectiva matrícula ou, decorrido o prazo legal, do cessamento automático dos efeitos da prenotação.

Cumpre, a respeito do assunto até aqui tratado, ressaltar nosso entendimento de inconstitucionalidade da cobrança do imposto de transmissão (ITBI) na consolidação da propriedade.9

  1. Não bastasse isso, a norma concebida na corregedoria paulista pretende impor ao fiduciário negligente penalidade cabalmente desconectada da estrutura jurídica do instituto ao vedar o prosseguimento da excussão, após decurso do prazo ali fixado e o cancelamento do protocolo por abandono, exigindo a abertura de novo procedimento de execução extrajudicial, como se o deletério descaso do credor tivesse o condão de repristinar o contrato fulminado.

A norma não explicita o que deve ser entendido por “novo procedimento de execução extrajudicial”, contudo, a melhor interpretação será encontrada no item 238 do capítulo XX das mesmas normas de serviço que assim dispõe: “o processo” (sic) de execução extrajudicial será formado com a autuação do requerimento de intimação e das peças que o acompanham”.

Destarte, a aplicação da penalidade tratada no item 250.2, capítulo XX,  das normas de serviço da Corregedoria Geral resultaria na invalidação integral da execução extrajudicial e no restabelecimento do status quo ante, consequentemente no seu refazimento desde o requerimento de intimação do fiduciante e, portanto, no convalescimento  – imediato e irreversível – do contrato de alienação fiduciária e na ressurreição do contrato principal, com o consequente retraimento das obrigações contratuais do fiduciante ao início do período de negligência do fiduciário, inclusive quanto ao vencimento das parcelas e encargos punitivos pelo não pagamento nos prazos originários, atribuindo e acumulando prejuízos ao fiduciante.  

De direito, conforme procedimentos arrolados na lei 9.514/97, a ‘certidão de transcurso de prazo sem purgação da mora’ pelo fiduciante constitui o título administrativo inscritível da consolidação da propriedade, ou seja, da transmutação da propriedade fiduciária em plena (ainda que condicionada), que produz efeitos jurídicos imediatos entre as partes e se perfaz com sua averbação de ofício, independentemente de requerimento ou petição do fiduciário, na matrícula imobiliária correspondente, para a pública exteriorização e ciência daqueles efeitos por terceiros.

Ora, se a consolidação da propriedade em nome do credor decorre – apenas – do transcurso do prazo sem a purgação da mora e essa passagem temporal regularmente certificada pelo oficial competente enseja, reflexamente, a extinção do direito real de aquisição antagônico e a resolução definitiva do contrato principal, ainda que a averbação possa ser obstada ou sobrestada até a efetiva apresentação da prova do pagamento dos tributos incidentes – por se tratar de exigência legal – evidentemente o descumprimento da obrigação fiscal não terá a aptidão de desconstituir as consequências jurídicas dela decorrentes e acima descritas.

Por último, a comprovação do recolhimento dos tributos incidentes não é uma mera exigência de natureza registral para a “finalização do procedimento”, sendo certo que a certificação do decurso de prazo – por si – reconhece e constitui o fato gerador que dá origem à obrigação tributária cujo cumprimento é exigido pela legislação específica, de forma que a ausência de pagamento até a data aprazada (dez ou quinze dias, conforme a interpretação adotada), acarretará a imposição de multas, encargos moratórios e atualização monetária, não sendo da competência da Corregedoria da Justiça, também aqui, dispensar ou postergar o recolhimento desses tributos.

  1. Os resultados nocivos dessa indevida prorrogação concedida ao credor fiduciário pela norma administrativa vão muito além da evidente violação do direito do fiduciante à imediata realização do leilão público para a venda do bem, liquidação da dívida e mediato reembolso do valor sobejante nos termos do art. 27 ‘caput’ e § 4º da lei 9.514/97, produzindo uma sequência de danos e prejuízos materiais e morais ao fiduciante cuja relação de causalidade com o elastecimento do prazo de consolidação da propriedade pode ser facilmente estabelecida.

Sucede que o saldo devedor da dívida será, para fins de determinação do valor de venda, atualizado na data do leilão, incorporando ao débito o valor das parcelas decursadas no período de 120 dias da dilação concedida, com os juros convencionais, penalidades e demais encargos contratuais (§ 3º do art. 27 da lei), vale dizer, independentemente da manutenção da posse do imóvel, o fiduciante responderá, pelas prestações vencidas no decorrer da procrastinação do credor fiduciário e, por absurdo, também pelas multas moratórias e contratuais do não desejado pagamento. Para além disso, serão acumuladas ao total da dívida todas as despesas, prêmios de seguro, encargos legais, tributos e contribuições condominiais também pagas ou incorridas desde a data da certificação do decurso da mora até a data do leilão.

Nada obstante, embora a consolidação – de fato – da propriedade em nome do credor resulte da simples certificação do decurso da mora, com o efeito de resolver – de direito – o contrato principal e extinguir a dívida, o devedor ou fiduciante permanecerá injustamente negativado nos cadastros das entidades de proteção ao crédito por todo esse período, com todo o inconveniente e severos prejuízos de ordem moral resultantes, impossibilitado, por exemplo, a contratação da locação de outro imóvel para sua moradia. 

  1. Por todo o exposto, parece-nos claro e razoável concluir que:

(a)  de acordo com as leis de regência e dos registros públicos vigentes o prazo para a comprovação de recolhimento dos tributos incidentes na consolidação da propriedade deve ser de 20 (vinte dias) contados da prenotação do requerimento de intimação, que será sobrestado a partir da data de expedição da intimação até a data de ciência, por certidão, do decurso de prazo para purgação da mora pelo devedor e fiduciante, sendo então retomado para o cumprimento da exigência legal (comprovação de pagamento dos tributos) até o termo final;

(b) o lapso de 120 (cento e vinte) dias de que trata o item 205 das normas de serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo não elastece os prazos peremptórios e próprios do fiduciário, devendo ser observado pelos oficiais de registro de imóveis, quando for o caso, para encerramento do protocolo e arquivamento dos autos abandonados;

(c) nada obsta, a nosso juízo, que o oficial de registro proceda ao arquivamento dos autos, por abandono logo após o decurso do prazo de validade da prenotação;

(d) a consolidação da propriedade, assim como a venda do bem em leilão público, são obrigações legais do fiduciário, podendo o devedor e fiduciante exigir sua efetivação, inclusive com antecipação de tutela e fixação de multa para o descumprimento, além da imposição de perdas e danos10;

(e) o fiduciante deve exigir que sejam excluídos do montante da dívida as multas e encargos decorrentes do não pagamento dos tributos no prazo legal, assim como das parcelas de dívidas vencidas no período de negligência do fiduciário, dos encargos tributários e condominiais, não sendo lícita, a nosso juízo, a exigência de taxa de ocupação relativa ao mesmo período.

São essas as considerações que entrego com vistas ao debate e aprimoramento do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.  


1 Provimento CGJSP nº 37/2013

2 Conforme exposto no XLIV Encontro do Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, Curitiba, 2017. https://irib.org.br/files/palestra/xliv-tema-03-maria-carmo1.pdf/

3 Art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942

4 Alvim Neto. José Manuel de Arruda [et al]. Lei dos Registros Públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1084.

5 Refere-se o autor ao art. 205 da Lei nº 6015/1973 – LRP

6 Silva, Ulisses da. Direito Imobiliário: O registro de imóveis e suas atribuições: a nova caminhada. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2013, p. 151

7 “45. Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação, salvo prorrogação por previsão
legal ou normativa, se, decorridos 30 (trinta) dias do seu lançamento no livro protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender as exigências legais.” (Prov. CGJSP 58/89, cap. XX)

8 Brandelli. Leonardo. Operações Imobiliárias Estruturação e tributação. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95

9 https://www.migalhas.com.br/depeso/381596/a-inconstitucionalidade-do-itbi-na-consolidacao-

10 Arts. 536, § 4º e 815 do Código de Processo Civil.

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia
Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia

Mauro Antônio Rocha

São essas as considerações que entrego com vistas ao debate e aprimoramento do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.

 

Na “ausência” de termo legal expresso para a consolidação da propriedade após decorrido o prazo para purgação da mora – e com base em incurial norma de serviço emanada da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo – os direitos dos fiduciantes são violados e suas dívidas injustamente oneradas.

  1. De acordo com os procedimentos da lei 9.514/97 verificado o inadimplemento total ou parcial da dívida pelo devedor e observado o decurso do prazo contratual de carência cabe ao credor iniciar a execução extrajudicial requerendo ao Oficial de Registro de Imóveis a intimação do fiduciante para efetuar o pagamento no prazo legal.

Transcorrido o lapso de quinze dias contados da efetiva intimação, sem que o fiduciante pague o débito apontado, o oficial de registro certificará o fato e dará ciência ao credor, para que este proceda à comprovação de recolhimento do ITBI e do laudêmio incidentes sobre a transmissão do domínio exigida para a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário.

A lei não determina expressamente o prazo para que o credor efetive os pagamentos e comprove os recolhimentos fiscais essenciais para a averbação. Essa “ausência” de termo legal expresso permitiu, por largo tempo, a procrastinação indeterminada e conveniente do pagamento dos tributos, da averbação da consolidação e da consequente alienação do imóvel em leilão pelo fiduciário, violando direitos e onerando a dívida do fiduciante.

  1. No ano de 20131, entretanto, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo incluiu no capítulo XX de suas normas de serviço, destinadas aos cartórios extrajudiciais, dispositivo – posteriormente replicado nas normas administrativas do extrajudicial de diversos outros estados da federação – redizendo que a consolidação da propriedade se faz à vista do comprovante de recolhimento dos tributos exigidos, que a base de cálculo do imposto sobre a transmissão da propriedade é o valor econômico declarado pelas partes ou o valor tributário do imóvel, independentemente do valor remanescente da dívida, complementado por subitem que vige atualmente com a seguinte redação, após ser alterado pelo Provimento CG 56/19:

250.2. Decorrido o prazo de 120 (cento e vinte) dias sem as providências elencadas no item anterior, os autos serão arquivados, com cancelamento do protocolo. Ultrapassado esse prazo, a consolidação da propriedade fiduciária exigirá novo procedimento de execução extrajudicial.

A rigor, a norma administrativa apenas indicou ao oficial de registro que, no caso de abandono do feito pelo interessado, procedesse ao arquivamento dos autos “decorrido o prazo de 120 dias sem as providências elencadas”, além de prescrever punição obviamente deturpada ao exigir “novo procedimento de execução extrajudicial” para o prosseguimento da excussão como consequência da negligência, entretanto, restou convencionado entre oficiais de registro de imóveis e credores fiduciários que “o credor tem um prazo de 120 dias”, conforme a norma administrativa e que “o prazo de vigência da prenotação de pedido de intimação ficará prorrogado até a finalização do procedimento com a apresentação do pagamento do imposto de transmissão, ITBI ou laudêmio”2.

Ainda que se pretenda sustentar a aludida “ausência” de prazo legal para a averbação da consolidação da propriedade – tema que será enfrentado em seguida – para justificar a adoção do prazo sugerido na norma  de serviço é preciso ressaltar que a e. Corregedoria da Justiça, mesmo autorizada a regulamentar as atividades dos  cartórios extrajudiciais3, não detém competência para legislar, especialmente sobre Direito Registral, matéria privativa da União, nos termos do art. 22, inciso XXV, da Constituição Federal, alterar prazos ou estabelecer obrigações para o jurisdicionado e, para além disso, que o prazo destacado não traz coincidência razoável com os demais prazos prescritos na lei, que expressam a celeridade e a agilidade pretendida no procedimento extrajudicial adotado.

  1. Ocorre, porém, que a afirmada presunção de “ausência” de prazo legal para a averbação de interesse do credor não resiste ao exame superficial do procedimento de execução extrajudicial trazido pelo art. 26 da lei 9.514/97 sob o crivo do direito registral vigente.

Nos termos do art. 26 da lei 9.514/97, a execução extrajudicial tem início com a constituição do fiduciante em mora e a prenotação de requerimento do fiduciário para que o oficial de registro proceda à intimação do fiduciante para a purgação da mora. Sobre a prenotação, ou inscrição no Livro do Protocolo, discorre o Desembargador Ricardo Dip, ao comentar o artigo acima transcrito:4

“Se o atual registro imobiliário brasileiro, centrado ‘quodammodo’, no método da matrícula ou fólio real (art. 195, LRP), demanda, para a complementação do sistema publicitário, o recurso a uma fonte pessoal (art. 180, LRP), não menos a metódica registral, já não à vista direta da publicidade, mas dirigida à garantia de direitos, exige uma ordem no tempo aquisitivo desses direitos. Não, entre nós, uma ordem exógena: ainda que o pudera ser, mediante alguma espécie de prioridade indireta, extrarregistrária, p. ex., notarial. No entanto, isto sim, uma ordem endógena, interna ao método registrário: a prenotação, i.e., a inscrição no Livro do Protocolo (art. 173, inc. I, 174 e 184 e ss., LRP).” (os grifos são do autor)

Isto posto, o registro imobiliário brasileiro obedece a “uma ordem no tempo aquisitivo” consubstanciada na prenotação, que estabelece o direito posicional de preferência, assim lecionado por Dip:

“O transitório direito posicional de preferência registrária, resultante da prenotação – potior in iure qui priusin tempore ou, mais exatamente, prius in tempore, fortior in tabula – permanece: (a) pelo prazo ordinário de 30 dias; (b) durante o processamento da dúvida (cf. art. 203. LRP); (c) até que se perfaça o registro ou a averbação objeto, a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação.” (os grifos são do autor)

A lei 6.015/73 – Lei dos Registros Públicos – que estabelecia, na redação vigente até o dia 27 de junho de 2022, a cessação dos efeitos da prenotação após decorridos 30 (trinta) dias de seu lançamento no protocolo – estabelece na redação vigente após o dia 28 de junho de 2022 que:

Art. 205 – Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 20 (vinte) dias da data do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais. 

O procedimento administrativo da execução extrajudicial da alienação fiduciária está regulamentado nos itens 236 e seguintes do capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo e, para o que interessa ao presente estudo, suficiente trazer os seguintes itens:

  1. Prenotado e encontrando-se em ordem, o requerimento deverá ser autuado com as peças que o acompanham, formando um processo para cada execução extrajudicial.

[…]

240.1. O prazo de vigência da prenotação ficará prorrogado até a finalização do procedimento. 

240.2 Formulada nota devolutiva pelo registrador no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora, o não atendimento das exigências por omissão do requerente no prazo de 30 dias5 acarretará o arquivamento do procedimento de intimação, com o cancelamento da prenotação.

Temos, assim, que, rigorosamente observada a norma administrativa, a prenotação do requerimento de intimação dará início ao “processo para cada execução extrajudicial” – e, portanto, ao prazo ordinário de 20 dias predito na norma legal, que permanecerá sobrestado “no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora” e da necessidade de comprovação do recolhimento dos tributos devidos – com igual prazo para cumprimento de exigência formulada em nota devolutiva, nesse período – ou até que se perfaça seu objeto, o que coincidirá com a purgação da mora ou com a efetiva consolidação da propriedade – “a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação”.

Dessa forma, ainda que se considere as naturais dificuldades encaradas pelos oficiais registradores e seus prepostos para a intimação pessoal do fiduciante, ultrapassando os desencontros, incertezas cadastrais e ocultações deliberadas – que, muitas das vezes, exigirão a publicação de editais – justificadoras do protraimento do prazo sem o correspondente lastro legislativo, bem como uma autoconcedida “autorização legislativa” de prorrogação normativa do prazo de validade da prenotação inserida pela Corregedoria Geral da Justiça no item 456 e, mais especificamente, no item 240.1 supra transcrito, no capítulo XX das normas de serviço parece-nos evidente que o decurso do prazo quinzenário conferido à purga da mora rematará a protelação conferida, fazendo com que se retome a contagem do prazo legal para a “finalização do procedimento”.

Na doutrina pesquisada, somente BRANDELLI resvalou na questão proposta, da seguinte maneira:

“Apesar de a prenotação do requerimento de intimação ter validade legal de 30 dias (art. 205 da Lei n. 6015/73), neste caso, sua validade será sobrestada pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações, o que poderá importar em inúmeras diligências, bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações.”7 

Reconhece BRANDELLI a necessidade do sobrestamento da prenotação “pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações (grifo nosso) […] bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações”. Pode-se inferir da leitura que, mesmo na doutrina favorável, o eventual sobrestamento não se estende para além da ultimação do prazo para a purga da mora.

  1. Prosseguindo, para a determinação da vigência do prazo de averbação da consolidação da propriedade é imprescindível que seja definido o momento da “finalização do procedimento”.

A nosso juízo, e com vistas às normas legais e à melhor doutrina, havendo o lançamento do requerimento de intimação no Livro de Protocolo, isto é, feita a prenotação, “a finalização do procedimento” ocorrerá com: 

a)  a purgação da mora;

b)  a averbação da consolidação da propriedade ao credor; ou

c)  o não cumprimento de exigência de qualquer natureza pelo credor, regularmente apontada pelo oficial de registro, inclusive comprovação do recolhimento dos impostos devidos. 

A primeira alternativa não requer maior destaque, sendo finalizado o procedimento com o pagamento da dívida dentro do prazo legal deferido para a purgação da mora. Na segunda, “a finalização do procedimento” provirá do averbamento da consolidação da propriedade em nome do credor, após descumprido o prazo de purgação pelo fiduciante regularmente intimado e comprovado o pagamento dos tributos incidentes – respeitado o prazo legal demarcado para a prenotação.

Menos óbvia, a alternativa final reclama maior aprofundamento: “a finalização do procedimento” se dará com a cessação dos efeitos da prenotação pela omissão do interessado em cumprir exigência legal, assim dizendo, no vigésimo dia contado do lançamento do requerimento da intimação no Livro do Protocolo, sobrestado pela expedição da intimação e retomado a partir de ciente o fiduciário do decurso do prazo para pagamento pelo fiduciante, declinada a data inicial e incluída a do término do prazo.

No caso específico de omissão na comprovação de cumprimento da obrigação tributária bastará que se determine o termo inicial da prenotação [dia 1], o dia da expedição da intimação [dia 2] e a data em que o oficial do registro deu ciência ao credor fiduciário do decurso do prazo [dia 3].

A título de exemplo para requerimento protocolado já na vigência da lei que reduziu o prazo da prenotação para 20 dias:

[Dia 1] prenotação em 04/07/2022 (o dia inicial é descartado);

[Dia 2] intimação expedida em 07/07/2022 (já decorridos 3 dias);

[Dia 3] certificação do final do prazo 28/02/2023 (decorrido mais 1 dia). 

A partir de então o credor terá 16 dias (dos 20 dias de prazo de que trata o art. 205 da LRP), com termo final em 16/3/23, para cumprir a exigência, ou seja, comprovar o pagamento dos impostos devidos sob pena de perempção da prenotação e a obrigação de reiniciar o procedimento de execução extrajudicial, conforme demanda a norma administrativa. Cabe realçar que alguns autores entendem que o prazo de cumprimento de exigência no período da prenotação será sempre de vinte dias, o que altera o termo final para 20/3/23, mas em nada altera o raciocínio exposto.  

Na hipótese de garantia fiduciária vinculada a operação de financiamento habitacional deverá ser observada a carência de 30 dias8, após a expiração do prazo de purgação da mora, para a consolidação da propriedade e, nessa hipótese, o [dia 3] corresponderia ao termo final da carência, retomando o prazo limite para a comprovação do recolhimento dos tributos e consolidação da propriedade.

Resta claro do exemplo em comento que o sobrestamento é findo com a certidão e ciência do credor do transcurso do prazo sem purgação da mora pelo fiduciante, retomando a prenotação seu trâmite normal e que a “finalização do procedimento” resultará da comprovação de pagamento dos tributos exigidos e da averbação da consolidação na respectiva matrícula ou, decorrido o prazo legal, do cessamento automático dos efeitos da prenotação.

Cumpre, a respeito do assunto até aqui tratado, ressaltar nosso entendimento de inconstitucionalidade da cobrança do imposto de transmissão (ITBI) na consolidação da propriedade.9

  1. Não bastasse isso, a norma concebida na corregedoria paulista pretende impor ao fiduciário negligente penalidade cabalmente desconectada da estrutura jurídica do instituto ao vedar o prosseguimento da excussão, após decurso do prazo ali fixado e o cancelamento do protocolo por abandono, exigindo a abertura de novo procedimento de execução extrajudicial, como se o deletério descaso do credor tivesse o condão de repristinar o contrato fulminado.

A norma não explicita o que deve ser entendido por “novo procedimento de execução extrajudicial”, contudo, a melhor interpretação será encontrada no item 238 do capítulo XX das mesmas normas de serviço que assim dispõe: “o processo” (sic) de execução extrajudicial será formado com a autuação do requerimento de intimação e das peças que o acompanham”.

Destarte, a aplicação da penalidade tratada no item 250.2, capítulo XX,  das normas de serviço da Corregedoria Geral resultaria na invalidação integral da execução extrajudicial e no restabelecimento do status quo ante, consequentemente no seu refazimento desde o requerimento de intimação do fiduciante e, portanto, no convalescimento  – imediato e irreversível – do contrato de alienação fiduciária e na ressurreição do contrato principal, com o consequente retraimento das obrigações contratuais do fiduciante ao início do período de negligência do fiduciário, inclusive quanto ao vencimento das parcelas e encargos punitivos pelo não pagamento nos prazos originários, atribuindo e acumulando prejuízos ao fiduciante.  

De direito, conforme procedimentos arrolados na lei 9.514/97, a ‘certidão de transcurso de prazo sem purgação da mora’ pelo fiduciante constitui o título administrativo inscritível da consolidação da propriedade, ou seja, da transmutação da propriedade fiduciária em plena (ainda que condicionada), que produz efeitos jurídicos imediatos entre as partes e se perfaz com sua averbação de ofício, independentemente de requerimento ou petição do fiduciário, na matrícula imobiliária correspondente, para a pública exteriorização e ciência daqueles efeitos por terceiros.

Ora, se a consolidação da propriedade em nome do credor decorre – apenas – do transcurso do prazo sem a purgação da mora e essa passagem temporal regularmente certificada pelo oficial competente enseja, reflexamente, a extinção do direito real de aquisição antagônico e a resolução definitiva do contrato principal, ainda que a averbação possa ser obstada ou sobrestada até a efetiva apresentação da prova do pagamento dos tributos incidentes – por se tratar de exigência legal – evidentemente o descumprimento da obrigação fiscal não terá a aptidão de desconstituir as consequências jurídicas dela decorrentes e acima descritas.

Por último, a comprovação do recolhimento dos tributos incidentes não é uma mera exigência de natureza registral para a “finalização do procedimento”, sendo certo que a certificação do decurso de prazo – por si – reconhece e constitui o fato gerador que dá origem à obrigação tributária cujo cumprimento é exigido pela legislação específica, de forma que a ausência de pagamento até a data aprazada (dez ou quinze dias, conforme a interpretação adotada), acarretará a imposição de multas, encargos moratórios e atualização monetária, não sendo da competência da Corregedoria da Justiça, também aqui, dispensar ou postergar o recolhimento desses tributos.

  1. Os resultados nocivos dessa indevida prorrogação concedida ao credor fiduciário pela norma administrativa vão muito além da evidente violação do direito do fiduciante à imediata realização do leilão público para a venda do bem, liquidação da dívida e mediato reembolso do valor sobejante nos termos do art. 27 ‘caput’ e § 4º da lei 9.514/97, produzindo uma sequência de danos e prejuízos materiais e morais ao fiduciante cuja relação de causalidade com o elastecimento do prazo de consolidação da propriedade pode ser facilmente estabelecida.

Sucede que o saldo devedor da dívida será, para fins de determinação do valor de venda, atualizado na data do leilão, incorporando ao débito o valor das parcelas decursadas no período de 120 dias da dilação concedida, com os juros convencionais, penalidades e demais encargos contratuais (§ 3º do art. 27 da lei), vale dizer, independentemente da manutenção da posse do imóvel, o fiduciante responderá, pelas prestações vencidas no decorrer da procrastinação do credor fiduciário e, por absurdo, também pelas multas moratórias e contratuais do não desejado pagamento. Para além disso, serão acumuladas ao total da dívida todas as despesas, prêmios de seguro, encargos legais, tributos e contribuições condominiais também pagas ou incorridas desde a data da certificação do decurso da mora até a data do leilão.

Nada obstante, embora a consolidação – de fato – da propriedade em nome do credor resulte da simples certificação do decurso da mora, com o efeito de resolver – de direito – o contrato principal e extinguir a dívida, o devedor ou fiduciante permanecerá injustamente negativado nos cadastros das entidades de proteção ao crédito por todo esse período, com todo o inconveniente e severos prejuízos de ordem moral resultantes, impossibilitado, por exemplo, a contratação da locação de outro imóvel para sua moradia. 

  1. Por todo o exposto, parece-nos claro e razoável concluir que:

(a)  de acordo com as leis de regência e dos registros públicos vigentes o prazo para a comprovação de recolhimento dos tributos incidentes na consolidação da propriedade deve ser de 20 (vinte dias) contados da prenotação do requerimento de intimação, que será sobrestado a partir da data de expedição da intimação até a data de ciência, por certidão, do decurso de prazo para purgação da mora pelo devedor e fiduciante, sendo então retomado para o cumprimento da exigência legal (comprovação de pagamento dos tributos) até o termo final;

(b) o lapso de 120 (cento e vinte) dias de que trata o item 205 das normas de serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo não elastece os prazos peremptórios e próprios do fiduciário, devendo ser observado pelos oficiais de registro de imóveis, quando for o caso, para encerramento do protocolo e arquivamento dos autos abandonados;

(c) nada obsta, a nosso juízo, que o oficial de registro proceda ao arquivamento dos autos, por abandono logo após o decurso do prazo de validade da prenotação;

(d) a consolidação da propriedade, assim como a venda do bem em leilão público, são obrigações legais do fiduciário, podendo o devedor e fiduciante exigir sua efetivação, inclusive com antecipação de tutela e fixação de multa para o descumprimento, além da imposição de perdas e danos10;

(e) o fiduciante deve exigir que sejam excluídos do montante da dívida as multas e encargos decorrentes do não pagamento dos tributos no prazo legal, assim como das parcelas de dívidas vencidas no período de negligência do fiduciário, dos encargos tributários e condominiais, não sendo lícita, a nosso juízo, a exigência de taxa de ocupação relativa ao mesmo período.

São essas as considerações que entrego com vistas ao debate e aprimoramento do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.  


1 Provimento CGJSP nº 37/2013

2 Conforme exposto no XLIV Encontro do Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, Curitiba, 2017. https://irib.org.br/files/palestra/xliv-tema-03-maria-carmo1.pdf/

3 Art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942

4 Alvim Neto. José Manuel de Arruda [et al]. Lei dos Registros Públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1084.

5 Refere-se o autor ao art. 205 da Lei nº 6015/1973 – LRP

6 Silva, Ulisses da. Direito Imobiliário: O registro de imóveis e suas atribuições: a nova caminhada. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2013, p. 151

7 “45. Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação, salvo prorrogação por previsão
legal ou normativa, se, decorridos 30 (trinta) dias do seu lançamento no livro protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender as exigências legais.” (Prov. CGJSP 58/89, cap. XX)

8 Brandelli. Leonardo. Operações Imobiliárias Estruturação e tributação. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95

9 https://www.migalhas.com.br/depeso/381596/a-inconstitucionalidade-do-itbi-na-consolidacao-

10 Arts. 536, § 4º e 815 do Código de Processo Civil.

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